A entrevista com designer João Nunes teve lugar na Serra de Arga no mês de janeiro de 2019. A conversa teve início na manhã do dia 29 e prolongou-se pelo almoço, durante o qual, à volta de uma bela mesa, tivemos oportunidade de falar sobre a passagem de João Nunes pela Escola de Belas Artes do Porto, a sua experiência como designer durante a guerra colonial enquanto cumpria o serviço militar, terminando com a partilha do Projecto ÍRIS DARGA[1], a concretização de um lugar criativo, dedicado ao Craft Design.

Serra de Arga:
29.01.2019

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Introduction

SUSANA BARRETO (S.B.): Falando um pouco do teu percurso como aluno da Escola de Belas Artes do Porto, em que ano iniciaste o teu curso?

JOÃO NUNES (J.N.): Em 1976. Foi o primeiro curso de Design, com o Jorge Afonso. Eu era aluno ao abrigo da lei militar, fiz o primeiro e o segundo ano mas a partir daí estava autorizado a fazer exames de três em três meses. Se assim não fosse não teria conseguido acabar o curso. Eu era já um profissional da área do design. Tinha começado a minha carreira como designer no exército. No exército trabalhei num gabinete de comunicação mantendo uma ligação ao MPLA, também na mesma área. Costumo dizer que era um agente duplo. O meu corpo trabalhava nos dois lados do eixo político, mas a minha cabeça era de esquerda e pendia naturalmente para o lado do MPLA.

Quando cheguei às Belas Artes o curso de design estava no início, sem grande equipamento e os professores migravam da área da pintura, da escultura, da arquitectura, como aliás aconteceu em todo o mundo. O primeiro e segundo ano do curso eram comuns às diferentes áreas. Na altura não me agradava nada, queria fazer design. Mas hoje, quando faço uma reflexão, reconheço que foi fundamental para mim como profissional. Sobretudo a escultura.

S.B.:As experiências como designer no tempo anterior à tua frequência do curso de design na ESBAP limitaram-se ao exército?

J.N:Tinha a experiência da passagem pelo exército e no atelier do meu pai. O meu pai era arquiteto. Desde miúdo que ia ao atelier do meu pai via os desenhadores a afiarem a mina do lápis. A destreza da passagem de um desenho a tinta da china, afinar um tira-linhas. Experimentei muito, saber como se corta e manipula uma folha de papel.

S.B.: Como foi a tua experiência como designer no exército?

J.N: Tive que fazer a tropa, sempre no meio dos pingos da chuva para não ir à guerra. Tive a sorte de fazer o meu serviço militar num atelier de comunicação do exército. Este espaço estava ligado ao comando chefe das forças armadas. Faziam-se cartazes, acções de propaganda. Desde a conceção até à impressão e numa fase seguinte havia um grupo de pessoas que tratava da distribuição. No departamento de design, fotografia e impressão trabalhavam cerca de 7 pessoas. A estratégia era da responsabilidade do General e do Coronel, que não eram operativos gráficos.

Por um lado foi uma sorte ter esta oportunidade, por outro lado era difícil gerir a veia política. Havia determinadas mensagens políticas que iam contra as minhas convicções.

S.B.: Alguma vez manipulaste um cartaz com mensagens subliminares?

J.N.: Pensei e fiz. Cheguei a conceber e preparar para impressão material de divulgação para o MPLA no seio do exército.

S.B.: Enquanto aluno, que técnicas que usavas para “pensar” os projetos?

J.N.: Desenho, lápis, os instrumentos habituais. O tira-linhas, o compasso, a régua, o esquadro e a pintura. Pintura a gouache. Eu tinha o privilégio de ter tido contacto com pintura a aerógrafo na tropa. Havia apenas duas pessoas que pintavam a aerógrafo nas Belas Artes naquela altura, eu e o João Machado. Uma vez num exame com o Amândio Silva risquei uns negativos e ampliei. Estas experiências que precederam a minha presença nas Belas Artes permitiram o domínio destes artifícios gráficos.

S.B.: Como descreverias a ESBAP no período pós revolução? A escola era ativa no que toca à participação política?

J.N.: Eu, o Mário Vaz, o João Moreira da Silva, éramos um pequeno grupo de jovens anarquistas. Numa altura em que era fundamental anarquizar o sistema todo. Na altura a escola era muito politizada. Grandes assembleias gerais. Tudo se discutia, a escola, o sistema de ensino, os professores, tudo estava em questão. Há quem diga que a nossa geração foi uma geração de passagens administrativas, que nada aprendeu, nada estudou. Concordo que muitos terão tirado partido disso e tiraram o curso “entre os pingos da chuva”. Mas não será assim em todas as épocas?

Há um homem odiado por muito gente que quanto a mim foi extraordinário. Calvet de Magalhães. Foi um homem importantíssimo para o design. Entrou para o curso de design e contribui muito para a formatação do curso. Os estúdios e os laboratórios de fotografia são introduzidos por ele. Dario Alves, João Machado, Amândio Silva são também nomes de grande referência e extrema importância para o curso de design.

Apesar destes profissionais e professores fazerem parte do grupo de docentes durante os anos que frequentei a ESBAP, o facto de a minha relação com a escola se estabelecer por meio de exames de três em três meses comprometeu muito a relação com os professores. No entanto ia sempre às aulas do Lapa [2] falávamos sobre Abraham Moles e os cibernéticos. Era um homem com um pensamento superior.

Eu frequentava a Escola de Belas Artes e estabelecia relação com as figuras interessantes que por ali passavam. Foi o José Rodrigues que me introduziu à classe intelectual portuense.

S.B.: Que diferenças encontras entre as tuas aulas enquanto aluno e como professor?

J.N: Lembro-me das aulas de fotografia com o Sousa Lopes e o Calvet de Magalhães. Aulas livres sem o bicho-papão do excesso de controlo. As pessoas faziam os seus projetos numa perspectiva mais livre e descontraída. Os atuais programas são uma faca de constrangimento sobre os professores. Tive a felicidade de nos últimos 14 anos ter lecionado na Universidade de Aveiro. O Carlos Aguiar quando me convidou aceitei com a condição de que poderia fazer os meus projetos de acordo com as minhas metodologias. Adorei a experiência até ao dia em que informaram que seria regente de uma disciplina. E fui, mas sempre numa perspectiva livre. Quando desenvolvemos um projeto incluímos tudo, tipografia, cor, design de interação. O importante é que o professor tenha uma grande abrangência intelectual e uma formação ampla e transversal.

S.B.: Conta-nos o que te trouxe a Arga?

J.N.: Há uns anos, talvez na primeira Bienal, passei por aqui com o João Moreira da Silva. Depois voltamos, comprei uma casa, fui ao convento com o José Rodrigues. Tinha muitos amigos em Cerveira. Há 30 anos carregava aqui as baterias, só com pescadores no rio.

Agora vivo cá. A partir do momento em que deixei o atelier no Porto, e fechei o ciclo do design de comunicação, entrei no ciclo do conhecimento da natureza. Pretendo ligar o design ao ciclo da natureza, às tecnologias tradicionais, à madeira, ao ferro por exemplo.

Foi minha intenção criar em torno da minha esfera, do meu espaço pessoal, a possibilidade das pessoas se aproximarem e trabalharem com ferramentas adequadas à produção de uma série de peças em ferro e madeira. Comecei pelopapier mâché [3]. Tenho a minha casa disponível no Airbnb [4], permitindo o alojamento de famílias nacionais e estrangeiras e foi com esta técnica que comecei a trabalhar com pais e crianças. As famílias vêm passar umas férias e eu convido-as a participar nestas oficinas, experiência que me proporciona uma espécie de laboratório de investigação. Lanço temas relacionados com a natureza, como a ornitologia, que para mim que vivo aqui estão muito presentes, e transporto-os, através destas experiências, para uma memória citadina. Interessam-me as questões ambientais ligadas à questão do fazer. É importante olhar para a árvore, retirar um pedaço dessa árvore e perceber que uma parte deste elemento da natureza será preservado no objeto.

S.B.: Sobre o lugar do design. Sobre o designer que és hoje e a tua colaboração com as Aldeias do Xisto.

J.N.: Design com responsabilidade social, design activismo, design relacional, design estratégico. O design não esgota a sua área de atuação. Bom design é o design de grande humildade. Trabalhei com a grande variedade de profissionais e acabo por ter um conhecimento superficial de muitas áreas do conhecimento. Mas é sempre a humildade, a receptividade e o respeito pelo conhecimento desses profissionais que permite fazer um bom trabalho.

Tive oportunidade de há 30 anos visitar a Holanda e perceber que em Amsterdão se pensava o Craft Design. Aqui em Cerveira faziam-se exposições com artesanato, umas coisas terríveis com bons e maus artesãos. O importante era serem muitos. Lembro-me de dizer ao José Rodrigues que podiamos ligar o design ao craft. E organizamos uma exposição/concurso em dois meses. Chamava-se “Vila Nova de Cerveira: Design Artesanal”. Com um bom prémio, um júri e personalidades ligadas à etnologia como Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira. Foi em 1985. Achei que era um caminho. Dos dinamarqueses, noruegueses, finlandeses. Era o caminho da ligação entre o desenho, o projeto, o saber fazer e as tecnologias. Uma mais valia em termos económicos e em termos de relacionamento e estabilidade entre as pessoas.

Mais tarde, em 2012, num congresso sobre Craft Design no Porto, fui convidado a apresentar uma comunicação. Nesse evento tomei contacto com uma pessoa ligada às Aldeias do Xisto, conversamos, e o meu nome foi indicado para colaborar num projeto a associação ADXTUR. Os três últimos projetos que desenvolvi, a partir de então em colaboração com esta entidade, deram-me a oportunidade de pensar as ligações entre o saber fazer manual, a área do projeto e o design. Os projetos que fui desenvolvendo na Universidade de Aveiro e a simultânea colaboração com esta associação ADXTUR, que gere as Aldeias do Xisto, permitiram-me crescer como designer intervencionista, como designer estratégico, como designer ambientalista. Os três projetos que desenvolvi em colaboração com esta associação, Água Musa, L4Craft, Agricultura Lusitana, foram apresentados no passado mês de dezembro em Lisboa, num seminário que permitiu a reflexão sobre o futuro das Aldeias do Xisto integrando o Craft Design e o pensamento multidisciplinar, ambos fundamentais ao desenvolvimento do interior do país.

 

[1] http://irisdarga.blogspot.com/
[2] Álvaro Lapa
[3] Andrews, D., History of Papier Mâché Dolls. http://www.papiermache.co.uk/articles/history-of-papier-mache-dolls/
[4]http://www.airbnb.com

Entrevista: Susana Barreto, Eliana Penedos-Santiago e Cláudia Lima

Fotografia:  Cláudia Lima

Vídeo: Eliana Penedos-Santiago